Gatinhos, culinária, esquecimento
Por Alexandre Honrado
Disse que a partir da última crónica publicada (na quarta-feira passada) neste Jornal de Mafra, tentaria escrever sobre coisas suaves, sobre gatinhos fofos, fadas voadoras, unicórnios, talvez sobre o Mandalorian, sobretudo sobre o adorável Baby Yoda. A alternativa seriam temas que passassem pelos programas da manhã e da tarde das televisões generalistas, de grande conteúdo para formatos simples, ou os múltiplos programas de culinária, com ou sem competição entre novos chefes de cozinhas.
Essa opção é perfeita e aquietadora; afastar-me-á em definitivo de temas horríveis e incómodos: a guerra entre duas direitas políticas muito pouco cultas nos Estados Unidos, uma encabeçada por Joe Biden a outra não encabeçada por Donald Trump (a ideia de que possa encabeçar seja o que for é repugnante, uma cabeça daquelas não deve ter nada dentro a não ser matéria orgânica não nomeável).
Não passarei também pelo capricho da moda, que é o de apresentar-me como mais um dos milhões de especialistas em virologia e em pandemias, embora um dos meus objetos sistemáticos de estudo seja a gripe espanhola, a grande assassina, que irradiou de um ponto concreto em 1917, teve um caso registado no exército norte-americano em 1918 (identificado na baía de Bristol, no Alaska) e que matou mais pessoas do que a primeira e a segunda guerra, dois grandes marcos da imbecilidade humana do século passado. É um tema que não domino, ou que abordo com a ressalva de quem tem sempre que estudar mais alguma coisa adiante para consolidar o que descobriu um pouco atrás.
Também ficarei a salvo de outras polémicas extraordinárias, como o roubo da tralha podre dos paióis de Tancos, que faria o encanto dos compradores do ebay.
A opção põe-me ainda a salvo de coisas, como as que se desprendem do pequeno Mussolini que temos na Assembleia da República e sobretudo das pessoas que consideram vir dali algum bem ao mundo. A fortuna que tem gasto em propaganda nos últimos tempos só prova que os seus interesses são mais os dos seus patrocinadores do que os dele próprio, coitado, embora seja um bom porta-voz do que não há de bom à nossa volta. Felizmente, a criatura volta para os braços da sua coelha nas horas mortas e não nos vem tentar 24 horas ao dia…
Também não cederei à tentação de comentários religiosos, pelo que não direi em voz alta o que penso do Cardeal Patriarca ou das ondas de erupção que certas confissões e estruturas que teimam em falar pelos crentes soltam, cada vez com mais desfaçatez, nas redes sociais, quase sempre com notícias falsas e uma tendência que me obrigaria a citar, pelo menos, Umberto Eco e as suas Lições para Identificar o Fascismo.
Fico sossegado, sem apontar a dedo os analfabetos emocionais que procuram nichos na territorialidade que devia ser casa comum; não baixo os braços mas pelo menos não tenho de usar os punhos da escrita para me defender da enorme desilusão que são alguns que conheço, que reconheço ou que se dão a conhecer.
Dou graças (sem qualquer carga teocêntrica) porque não atravessamos este período de tantas limitações nas mãos inábeis de alguns que no passado nos governaram e talvez louve em especial a existência da fibra ótica que me leva para outras e distantes paragens.
Se este fosse outro texto, acabaria com uma frase sobre a alteridade do sentir, o que não seria perigoso: as pessoas, dizem-me, já não leem nada de princípio a fim, e frases desse tipo nunca são bem entendidas.
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